Aproveitando o fato de sua mãe
ainda não ter voltado da casa dos tios, Alisha decidiu tirar o dia para
reorganizar a loja. Depois de deixar Liam com a babá, uma jovem simpática e
rechonchuda chamada Luce, Alisha correu para a loja.
Sem pressa, limpou e reorganizou
cada pedaço dela, demorando-se nos detalhes. Sabia que uma boa apresentação era
essencial para os negócios, mas, principalmente, sabia o quanto aquele espaço
havia sido importante para seu pai.
Desde que herdara a loja, a jovem havia dedicado tanto amor e cuidados a
ela quanto dedicara a seu pai em vida. Amava as prateleiras intermináveis, o
chão de uma madeira escura e brilhante, as cortinas verdes e densas, as paredes
com um papel florido de fundo alaranjado, a grande lareira de pedra, os sofás,
verdes como as cortinas, deixados ali para aqueles que quisessem parar para ler
ou conversar, a mesinha de centro de mogno com o retrato da loja no dia em que
seu pai a compara...
Inclinando-se sobre a mesinha, Alisha pegou a foto, saudosa. Seus pais estavam
abraçados em frente a uma casinha em ruinas, ambos sorrindo como se tivessem
acabado de realizar o maior sonho de todos. Era espantoso ver sua mãe sorrindo
assim, depois de tanto tempo. Francamente não conseguia se lembrar da última
vez em que ouvira a risada da mãe. Com os olhos marejados, a moça recolocou o
retrato na mesinha depois de limpá-lo com um pano.
Respirando fundo, ela olhou ao
redor, pensando em qual seria o próximo passo. Havia algum tempo que estava
planejando uma reforma na loja. Queria expandi-la, melhorá-la. Torná-la mais
atraente. Talvez recolher doações de livros e realmente montar uma pequena
biblioteca. Deixar o espaço aconchegante para visitantes que queiram passar o
dia lendo em um local tranquilo. Ruby já havia lhe dito que a loja precisava de
um café, e estava começando a concordar com ela.
Num impulso, Alisha pegou um
pequeno caderninho de anotações que sempre deixava ao lado do caixa e começou a
rabisca-lo com as ideias da reforma. Começaria, então, pela expansão. Se
expandisse a construção para o quintal dos fundos, teria espaço suficiente para
acomodar as prateleiras de livros ou para o café. Levando-se em conta a
necessidade de lucro para cobrir as despesas da reforma, talvez fosse melhor
começar com o...
- Bom dia, Alisha!
Ao ouvir a voz de Thomas, a moça
deu um pulo. Com a mão sobre o peito acelerado, ela encarou o intruso com um
olhar sério.
- Você quase me matou.
- Pelo contrário. Bati três
vezes à porta e você não ouviu. Achei melhor entrar para ver se você ainda
estava respirando.
Alisha notou um grande embrulho
retangular e fino do lado de fora e então se lembrou. Ele avisara que viria
ajudar a arrumar a janela, e ela se esquecera completamente.
- Quanto lhe devo pelo vidro?
Com um sorriso descrente, Thomas
simplesmente piscou para ela e colocou as luvas para mexer com o vidro que
havia trazido.
- Só entrei para avisar que
cheguei. Estarei trabalhando lá fora.
- Espere, quanto lhe...
Mas ele já saíra. Depois,
decidiu, lidaria com o pagamento. Se o homem queria ser teimoso, por Deus, que
ele o fosse. Não estava com humor para discussões naquela manhã. Voltou sua
atenção para o caderno, imersa nas ideias da reforma. Se fosse cuidadosa, teria
o dinheiro para o início da reforma em alguns meses. Olhou o calendário na
parede. Estavam em meio ao outono. Talvez, só talvez, a loja ficasse pronta
antes da próxima primavera, o que seria um ótimo negócio.
Um movimento à sua esquerda
chamou sua atenção. Ao olhar em direção à janela, Alisha observou a figura de
Thomas retirando os restos do antigo vidro. Notou, assim como na noite
anterior, que ele usava uma camisa de botões branca, com as mangas dobradas
próximas aos cotovelos, e que seu corpo era perfeitamente contornado por ela.
Lembrou de como se sentira naqueles braços, que a embalaram tão docemente apenas
há poucas horas...
Desviou os olhos. Não seria pega
olhando para ele novamente. Além disso, ela tinha muito trabalho a fazer.
Virando-se de costas para a
janela, Alisha observou a loja.
Estava muito mais arrumada que
antes. Os móveis, apesar de antigos, estavam brilhantes. O fogo estava aceso. O
local parecia mais acolhedor que nunca.
Permitindo-se um pequeno
descanso, a moça caminhou até os sofás e deitou em um deles, de forma natural e
confortável.
Era estranho como aquele lugar
parecia muito mais uma casa para ela do que o lugar onde morava. É verdade que
Stella nunca deixou que ela modificasse a casa. Enquanto Alisha tentava de tudo
para deixar aquele lugar mais aconchegante, sua mãe era a primeira a desfazer
as mudanças, alegando que Alisha não tinha o direito de tocar no que não era
seu. Entretanto, Stella transformara a casa em seu luto. No andar de cima, o
quarto onde seu pai dormira estava intacto, como que esperando por ele. A mãe
mudar-se para o quarto de hóspedes, uma vez que a lembrança do marido no quarto
do casal era insuportável, e, mesmo com a chegada de Liam, Stella fez questão
de manter Alisha e o bebê no mesmo quarto. Na casa não haviam plantas, flores,
enfeites, nada. Eram apenas os móveis, as cortinas fechadas, a amargura e o
lamento.
Alisha reconhecia o quanto
aquilo era mórbido. Aquele eterno clima de enterro.
Mas a loja... a loja era altiva,
esperançosa, aconchegante. Se tivesse uma casa, imaginava ela, seria algo como
aquilo. A lareira acesa, as cortinas abertas, o sol entrando pela janela...
Alguns minutos depois, Alisha
acordou com um sorriso luminoso no rosto. Ao olhar ao redor, percebeu que havia
adormecido e, sobressaltada, sentou-se, irritada consigo mesma.
Thomas estava sentado
confortavelmente no sofá da frente. Em seu colo, um caderno de capa preta e uma
caneta, que escrevia incessantemente, e que não parou de se movimentar quando
ele a cumprimentou.
- Dormiu bem?
Encabulada, ela esfregou os
olhos. O sonho havia sido tão bom. Ela.. Liam.. a casa nova.. aqueles braços
que a envolviam por trás.
Levantou-se e virou de costas
para Thomas. Que bobagem. Sonhar com um abraço daqueles.
Antes que pudesse reagir, Alisha
sentiu um braço forte envolve-la pela cintura. Seu corpo vibrou
instantaneamente, sentindo o corpo que se moldava suavemente ao dela por trás.
Uma voz grave e rouca sussurrou em seu ouvido.
- Prepare-se. A Senhora Dunne
está caminhando em nossa direção. Tente fingir que não estava dormindo.
A princípio, as palavras de
Thomas não fizeram o menor sentido. A senhora quem? Fingir o que?
Para a sorte de Alisha, seu
corpo reagiu tanto ao corpo de Thomas que não sobrou qualquer vestígio de sono
em seus olhos. Quando avistou a Senhora extremamente malvestida que vinha como
um furacão em sua direção, teve o único instinto de sair do abraço de Thomas e
parecer firme. Entretanto, o braço de Thomas foi mais firme que a vontade dela,
e ele não a libertou do abraço quando a madame esnobe entrou na loja.
- Senhora Dunne, que surpresa...
- Não perca seu tempo com falsas
lisonjas, menina. Quero saber o que foi que você fez com meu filho.
- O que eu o que?
Com um brilho fatal nos olhos, a
senhora estendeu um pedaço de papel amaçado para Alisha, que estava atônita.
Com as mãos trêmulas, a moça pegou o papel e começou a ler. Atrás dela, Thomas
explodiu em uma gargalhada animada e surpresa.
- Me parece, Senhora Dunne, que
seu filho está apaixonado por Alisha.
- Que brincadeira de mal gosto é
essa? Meu filho jamais se apaixonaria por uma mulherzinha como ela.
O corpo de Alisha se retesou,
com raiva. Ela tinha uma resposta pronta na ponta da língua quando sentiu a mão
de Thomas, que ainda a prendia pela cintura, acariciar sua barriga de leve. Seu
corpo ardeu com o toque. Como era possível que o mesmo homem que a abraçou com
tanta ternura na noite anterior conseguisse despertar seus instintos mais profundos
com uma simples carícia em sua barriga? A mesma pessoa. Toques tão diferentes.
- Senhora Dunne, seja
razoável... – começou ele, com um riso contido na voz. – Aparentemente, o
menino está simplesmente apaixonado. O que não é surpresa para ninguém, uma vez
que adolescentes tendem a se apaixonar por mulheres bonitas. – Ele pressionou
suavemente a cintura de Alisha quando ela deu a entender que iria dizer alguma
coisa. – Tenho certeza de que a Senhora mesma recebeu incontáveis galanteios de
jovens apaixonados durante sua vida.
Tentando disfarçar a alegria
inesperada que aquele comentário trouxe, a Senhora Dunne simplesmente pegou o
papel das mãos de Alisha, que parecia muda.
- Espero que seja somente isso,
Senhorita Ethal. Pois se eu desconfiar que você tem tentado seduzir um de meus
meninos, a senhorita vai pagar caro. Passar bem.
E, assim como veio, ela se foi.
Só então Thomas soltou Alisha de
seu abraço.
Desequilibrada, a moça olhou
incrédula para ele, tentando ignorar a sensação de vazio que preencheu o lugar
onde a poucos segundos ele descansava a própria mão.
- O que, Diabos, acabou de
acontecer?
- Você recebeu uma declaração de
amor. Acaso não leu o poema?
- Não me refiro a isso.
Rindo, ele tocou o rosto dela e
colocou uma mecha de seu cabelo para trás de sua orelha.
- Nos livrei de uma grande discussão
com uma mulher vestida com algo que me parecia pele de crocodilo com pelos de
guaxinim.
Uma gargalhada inesperada tomou
conta de Alisha. Era exatamente o que a roupa da mulher lhe parecera.
- Seu idiota...
- E, claro, também te abracei.
Alisha congelou. Seus olhos
cravados nele.
- E qual é o problema? Nos
abraçamos ontem também, Thomas.
Sua voz soava distante, fria.
- Não da mesma forma que hoje.
Você sabe disso.
Com um brilho divertido nos
olhos, ele levantou os braços, como se estivesse prestes a se render.
- Só fiz o que você me pediu,
Alisha.
O que ela pediu? Mas o que...?
O sonho.
De repente, a voz distante de
Ruby soou em sua cabeça. Um fio de lembrança de uma de suas antigas “noites do
pijama”... um sussurro...
- “Pelos Deuses, Alisha! Cale
esta maldita boca. Não me importa que você esteja dormindo e que não vá se
lembrar disso amanhã. Eu quero
dormir!”
Ela falara dormindo.
Diabos, ela falava dormindo.
Droga.
- Não sei do que você está
falando.
Alisha estava prestes a se
afastar, já estava voltada para o balcão do caixa quando sentiu os braços dele
envolvendo-a por trás novamente. Seu sangue ferveu e ela perdeu o ar.
- Arrisco dizer que sabe sim,
Alisha.
Com um suspiro suave, ele
deslizou suavemente a boca pelo pescoço dela, contendo um gemido de prazer
quando sentiu a pele da moça se arrepiar sob seus lábios.
Rindo, ele a soltou com
dificuldade, sentindo a própria cabeça rodar.
- Evite falar enquanto dorme. Deus
sabe o que mais você pode acabar me pedindo.
Ainda em choque pelo calor que
percorreu seu corpo com um simples toque da boca dele, Alisha pegou uma das
almofadas do sofá e arremessou em Thomas, sentindo prazer ao ver o brilho de
surpresa nos olhos dele.
- Pode deixar. Vou tomar
cuidado.
Sua resposta foi cortante e
agressiva.
Para surpresa dela, ele
arremessou a almofada de volta.
- Crianças, contenham-se!
O tom falsamente maternal de
Ruby foi imediatamente substituído por uma longa e estrondosa risada.
- Discutindo a relação logo
cedo, meninos?
Sem pensar duas vezes, Thomas e
Alisha se olharam e, em segundos, cada um havia arremessado uma almofada em
Ruby, que, desequilibrada, quase caiu para trás.
- Pestinhas!
Rindo sem parar, Alisha se sentou
no sofá. Os olhos lacrimejavam com a lembrança da surpresa nos olhos de Ruby.
Thomas observava aquela cena
tentando controlar o próprio riso. Sabia que, se não fosse pela entrada de
Ruby, provavelmente ele e Alisha estariam discutindo por conta do comentário
prepotente que ele fizera. Mas ele sabia que estava certo. Ele sabia que ela o
desejava.
E se estivesse errado?
Seu estômago pareceu se
embrulhar com a ideia.
- Vi que a janela foi arrumada.
Trabalho seu, Fenian?
- Sim. Recebi uma almofadada
como recompensa.
- Ora, você sabe muito bem que
não foi por isso. – Interveio Alisha, irritada novamente.
- Qual foi o motivo, então? –
Inquiriu Ruby.
A pergunta pegou Alisha
desprevenida, e a moça sentiu o rosto queimar.
Com um brilho selvagem nos olhos,
Thomas cumprimentou as duas com um sorriso torto e disse que voltaria mais
tarde. Ele se obrigou a sair da loja, temendo perder o controle e tomar aqueles
lábios ali mesmo, na frente de Ruby.
A verdade é que não tinha ideia
do quanto a desejava até sentir sua boca contra a pele dela. A dormência que se
espalhou por seus lábios... nunca sentira aquilo com ninguém. Precisava se
afastar. Precisava pensar com clareza, e Alisha não ajudava em nada ao corar
com a simples ideia de lhe pedir mais que um abraço. A essa altura, ele já a
conhecia o suficiente para saber que se ela não quisesse nada com ele, ela lhe
diria isso com toda a certeza do mundo.
Mas não.
Ela corara.
Corara e não dissera nada.
Dentro da loja, Ruby ainda
tentava entender a situação. Alisha estava com o olhar preso na porta, e
parecia absurdamente irritada. Rindo consigo mesma, a moça simplesmente esperou
que o acesso de raiva da amiga passasse enquanto recolocava as almofadas no
sofá.
- Noite interessante a de ontem?
- O que quer dizer?
- Ora, não me venha com
segredos! Ontem ele foi lhe devolver a cesta de noite e hoje vocês se olham
como dois animais prestes a se atacarem. Acha que não sei o que isso significa?
- Significa que ele é um
prepotente metido que se acha a última gota do Shannon.
- E significa que ele logo
estará em sua cama.
- Ruby, pelo amor de Deus! –
Alisha tentava se sentir ofendida com a afirmação, mas percebeu, relutante, que
a ideia já havia lhe ocorrido.
Com um misto de birra e receio,
ela bufou e foi para trás do balcão trabalhar nas propostas da reforma,
enquanto Ruby se jogou no sofá e começou a tagarelar sem parar sobre o filme
que assistira na noite anterior. Em poucos segundos, ela e Alisha estavam
rindo, como se nada tivesse acontecido.
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Thomas não retornou à loja
naquele dia. Pelo contrário, procurou se manter o mais distante possível dela.
Fazia quase uma semana que
estava em Clare e tudo o que vira fora seu chalé, o restaurante em frente à
loja de Alisha, a loja de Alisha, a casa de Alisha e o rio Shannon... na
companhia de Alisha.
Estava começando a suspeitar que
havia “Alisha” demais em sua breve estadia, o que poderia se tornar um problema
a longo prazo.
Olhou pela janela de seu chalé e
observou o céu, que agora estava limpo. A chuva finalmente tinha dado uma
trégua significativa, o que tornava a caminhada que ele estava planejando
viável.
Com o ânimo renovado com a ideia
de sair para caminhar e simplesmente escrever, Thomas pegou seu caderno e saiu
do Chalé, com um sorriso de orelha a orelha.
Estava na hora do primeiro
assassinato de seu livro ganhar corpo.
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