segunda-feira, 16 de maio de 2016

Claddagh - Capítulo 5



                Aproveitando o fato de sua mãe ainda não ter voltado da casa dos tios, Alisha decidiu tirar o dia para reorganizar a loja. Depois de deixar Liam com a babá, uma jovem simpática e rechonchuda chamada Luce, Alisha correu para a loja.
                Sem pressa, limpou e reorganizou cada pedaço dela, demorando-se nos detalhes. Sabia que uma boa apresentação era essencial para os negócios, mas, principalmente, sabia o quanto aquele espaço havia sido importante para seu pai.
Desde que herdara a loja, a jovem havia dedicado tanto amor e cuidados a ela quanto dedicara a seu pai em vida. Amava as prateleiras intermináveis, o chão de uma madeira escura e brilhante, as cortinas verdes e densas, as paredes com um papel florido de fundo alaranjado, a grande lareira de pedra, os sofás, verdes como as cortinas, deixados ali para aqueles que quisessem parar para ler ou conversar, a mesinha de centro de mogno com o retrato da loja no dia em que seu pai a compara...
Inclinando-se sobre a mesinha, Alisha pegou a foto, saudosa. Seus pais estavam abraçados em frente a uma casinha em ruinas, ambos sorrindo como se tivessem acabado de realizar o maior sonho de todos. Era espantoso ver sua mãe sorrindo assim, depois de tanto tempo. Francamente não conseguia se lembrar da última vez em que ouvira a risada da mãe. Com os olhos marejados, a moça recolocou o retrato na mesinha depois de limpá-lo com um pano.
               Respirando fundo, ela olhou ao redor, pensando em qual seria o próximo passo. Havia algum tempo que estava planejando uma reforma na loja. Queria expandi-la, melhorá-la. Torná-la mais atraente. Talvez recolher doações de livros e realmente montar uma pequena biblioteca. Deixar o espaço aconchegante para visitantes que queiram passar o dia lendo em um local tranquilo. Ruby já havia lhe dito que a loja precisava de um café, e estava começando a concordar com ela.
                Num impulso, Alisha pegou um pequeno caderninho de anotações que sempre deixava ao lado do caixa e começou a rabisca-lo com as ideias da reforma. Começaria, então, pela expansão. Se expandisse a construção para o quintal dos fundos, teria espaço suficiente para acomodar as prateleiras de livros ou para o café. Levando-se em conta a necessidade de lucro para cobrir as despesas da reforma, talvez fosse melhor começar com o...
                - Bom dia, Alisha!
                Ao ouvir a voz de Thomas, a moça deu um pulo. Com a mão sobre o peito acelerado, ela encarou o intruso com um olhar sério.
                - Você quase me matou.
                - Pelo contrário. Bati três vezes à porta e você não ouviu. Achei melhor entrar para ver se você ainda estava respirando.
                Alisha notou um grande embrulho retangular e fino do lado de fora e então se lembrou. Ele avisara que viria ajudar a arrumar a janela, e ela se esquecera completamente.
                - Quanto lhe devo pelo vidro?
                Com um sorriso descrente, Thomas simplesmente piscou para ela e colocou as luvas para mexer com o vidro que havia trazido.
                - Só entrei para avisar que cheguei. Estarei trabalhando lá fora.
                - Espere, quanto lhe...
                Mas ele já saíra. Depois, decidiu, lidaria com o pagamento. Se o homem queria ser teimoso, por Deus, que ele o fosse. Não estava com humor para discussões naquela manhã. Voltou sua atenção para o caderno, imersa nas ideias da reforma. Se fosse cuidadosa, teria o dinheiro para o início da reforma em alguns meses. Olhou o calendário na parede. Estavam em meio ao outono. Talvez, só talvez, a loja ficasse pronta antes da próxima primavera, o que seria um ótimo negócio.
                Um movimento à sua esquerda chamou sua atenção. Ao olhar em direção à janela, Alisha observou a figura de Thomas retirando os restos do antigo vidro. Notou, assim como na noite anterior, que ele usava uma camisa de botões branca, com as mangas dobradas próximas aos cotovelos, e que seu corpo era perfeitamente contornado por ela. Lembrou de como se sentira naqueles braços, que a embalaram tão docemente apenas há poucas horas...
                Desviou os olhos. Não seria pega olhando para ele novamente. Além disso, ela tinha muito trabalho a fazer.
                Virando-se de costas para a janela, Alisha observou a loja.
                Estava muito mais arrumada que antes. Os móveis, apesar de antigos, estavam brilhantes. O fogo estava aceso. O local parecia mais acolhedor que nunca.
                Permitindo-se um pequeno descanso, a moça caminhou até os sofás e deitou em um deles, de forma natural e confortável.
                Era estranho como aquele lugar parecia muito mais uma casa para ela do que o lugar onde morava. É verdade que Stella nunca deixou que ela modificasse a casa. Enquanto Alisha tentava de tudo para deixar aquele lugar mais aconchegante, sua mãe era a primeira a desfazer as mudanças, alegando que Alisha não tinha o direito de tocar no que não era seu. Entretanto, Stella transformara a casa em seu luto. No andar de cima, o quarto onde seu pai dormira estava intacto, como que esperando por ele. A mãe mudar-se para o quarto de hóspedes, uma vez que a lembrança do marido no quarto do casal era insuportável, e, mesmo com a chegada de Liam, Stella fez questão de manter Alisha e o bebê no mesmo quarto. Na casa não haviam plantas, flores, enfeites, nada. Eram apenas os móveis, as cortinas fechadas, a amargura e o lamento.
                Alisha reconhecia o quanto aquilo era mórbido. Aquele eterno clima de enterro.
                Mas a loja... a loja era altiva, esperançosa, aconchegante. Se tivesse uma casa, imaginava ela, seria algo como aquilo. A lareira acesa, as cortinas abertas, o sol entrando pela janela...
                Alguns minutos depois, Alisha acordou com um sorriso luminoso no rosto. Ao olhar ao redor, percebeu que havia adormecido e, sobressaltada, sentou-se, irritada consigo mesma.
                Thomas estava sentado confortavelmente no sofá da frente. Em seu colo, um caderno de capa preta e uma caneta, que escrevia incessantemente, e que não parou de se movimentar quando ele a cumprimentou.
                - Dormiu bem?
                Encabulada, ela esfregou os olhos. O sonho havia sido tão bom. Ela.. Liam.. a casa nova.. aqueles braços que a envolviam por trás.
                Levantou-se e virou de costas para Thomas. Que bobagem. Sonhar com um abraço daqueles.
                Antes que pudesse reagir, Alisha sentiu um braço forte envolve-la pela cintura. Seu corpo vibrou instantaneamente, sentindo o corpo que se moldava suavemente ao dela por trás. Uma voz grave e rouca sussurrou em seu ouvido.
                - Prepare-se. A Senhora Dunne está caminhando em nossa direção. Tente fingir que não estava dormindo.
                A princípio, as palavras de Thomas não fizeram o menor sentido. A senhora quem? Fingir o que?
                Para a sorte de Alisha, seu corpo reagiu tanto ao corpo de Thomas que não sobrou qualquer vestígio de sono em seus olhos. Quando avistou a Senhora extremamente malvestida que vinha como um furacão em sua direção, teve o único instinto de sair do abraço de Thomas e parecer firme. Entretanto, o braço de Thomas foi mais firme que a vontade dela, e ele não a libertou do abraço quando a madame esnobe entrou na loja.
                - Senhora Dunne, que surpresa...
                - Não perca seu tempo com falsas lisonjas, menina. Quero saber o que foi que você fez com meu filho.
                - O que eu o que?
                Com um brilho fatal nos olhos, a senhora estendeu um pedaço de papel amaçado para Alisha, que estava atônita. Com as mãos trêmulas, a moça pegou o papel e começou a ler. Atrás dela, Thomas explodiu em uma gargalhada animada e surpresa.
                - Me parece, Senhora Dunne, que seu filho está apaixonado por Alisha.
                - Que brincadeira de mal gosto é essa? Meu filho jamais se apaixonaria por uma mulherzinha como ela.
                O corpo de Alisha se retesou, com raiva. Ela tinha uma resposta pronta na ponta da língua quando sentiu a mão de Thomas, que ainda a prendia pela cintura, acariciar sua barriga de leve. Seu corpo ardeu com o toque. Como era possível que o mesmo homem que a abraçou com tanta ternura na noite anterior conseguisse despertar seus instintos mais profundos com uma simples carícia em sua barriga? A mesma pessoa. Toques tão diferentes.
                - Senhora Dunne, seja razoável... – começou ele, com um riso contido na voz. – Aparentemente, o menino está simplesmente apaixonado. O que não é surpresa para ninguém, uma vez que adolescentes tendem a se apaixonar por mulheres bonitas. – Ele pressionou suavemente a cintura de Alisha quando ela deu a entender que iria dizer alguma coisa. – Tenho certeza de que a Senhora mesma recebeu incontáveis galanteios de jovens apaixonados durante sua vida.
                Tentando disfarçar a alegria inesperada que aquele comentário trouxe, a Senhora Dunne simplesmente pegou o papel das mãos de Alisha, que parecia muda.
                - Espero que seja somente isso, Senhorita Ethal. Pois se eu desconfiar que você tem tentado seduzir um de meus meninos, a senhorita vai pagar caro. Passar bem.
                E, assim como veio, ela se foi.
                Só então Thomas soltou Alisha de seu abraço.
                Desequilibrada, a moça olhou incrédula para ele, tentando ignorar a sensação de vazio que preencheu o lugar onde a poucos segundos ele descansava a própria mão.
                - O que, Diabos, acabou de acontecer?
                - Você recebeu uma declaração de amor. Acaso não leu o poema?
                - Não me refiro a isso.
                Rindo, ele tocou o rosto dela e colocou uma mecha de seu cabelo para trás de sua orelha.
                - Nos livrei de uma grande discussão com uma mulher vestida com algo que me parecia pele de crocodilo com pelos de guaxinim.
                Uma gargalhada inesperada tomou conta de Alisha. Era exatamente o que a roupa da mulher lhe parecera.
                - Seu idiota...
                - E, claro, também te abracei.
                Alisha congelou. Seus olhos cravados nele.
                - E qual é o problema? Nos abraçamos ontem também, Thomas.
                Sua voz soava distante, fria.
                - Não da mesma forma que hoje. Você sabe disso.
                Com um brilho divertido nos olhos, ele levantou os braços, como se estivesse prestes a se render.
                - Só fiz o que você me pediu, Alisha.
                O que ela pediu? Mas o que...?
                O sonho.
                De repente, a voz distante de Ruby soou em sua cabeça. Um fio de lembrança de uma de suas antigas “noites do pijama”... um sussurro...
                - “Pelos Deuses, Alisha! Cale esta maldita boca. Não me importa que você esteja dormindo e que não vá se lembrar disso amanhã. Eu quero dormir!”
                Ela falara dormindo.
                Diabos, ela falava dormindo.
                Droga.
                - Não sei do que você está falando.
                Alisha estava prestes a se afastar, já estava voltada para o balcão do caixa quando sentiu os braços dele envolvendo-a por trás novamente. Seu sangue ferveu e ela perdeu o ar.
                - Arrisco dizer que sabe sim, Alisha.
                Com um suspiro suave, ele deslizou suavemente a boca pelo pescoço dela, contendo um gemido de prazer quando sentiu a pele da moça se arrepiar sob seus lábios.
                Rindo, ele a soltou com dificuldade, sentindo a própria cabeça rodar.
                - Evite falar enquanto dorme. Deus sabe o que mais você pode acabar me pedindo.
                Ainda em choque pelo calor que percorreu seu corpo com um simples toque da boca dele, Alisha pegou uma das almofadas do sofá e arremessou em Thomas, sentindo prazer ao ver o brilho de surpresa nos olhos dele.
                - Pode deixar. Vou tomar cuidado.
                Sua resposta foi cortante e agressiva.
                Para surpresa dela, ele arremessou a almofada de volta.
                - Crianças, contenham-se!
                O tom falsamente maternal de Ruby foi imediatamente substituído por uma longa e estrondosa risada.
                - Discutindo a relação logo cedo, meninos?
                Sem pensar duas vezes, Thomas e Alisha se olharam e, em segundos, cada um havia arremessado uma almofada em Ruby, que, desequilibrada, quase caiu para trás.
                - Pestinhas!
                Rindo sem parar, Alisha se sentou no sofá. Os olhos lacrimejavam com a lembrança da surpresa nos olhos de Ruby.
                Thomas observava aquela cena tentando controlar o próprio riso. Sabia que, se não fosse pela entrada de Ruby, provavelmente ele e Alisha estariam discutindo por conta do comentário prepotente que ele fizera. Mas ele sabia que estava certo. Ele sabia que ela o desejava.
                E se estivesse errado?
                Seu estômago pareceu se embrulhar com a ideia.
                - Vi que a janela foi arrumada. Trabalho seu, Fenian?
                - Sim. Recebi uma almofadada como recompensa.
                - Ora, você sabe muito bem que não foi por isso. – Interveio Alisha, irritada novamente.
                - Qual foi o motivo, então? – Inquiriu Ruby.
                A pergunta pegou Alisha desprevenida, e a moça sentiu o rosto queimar.
                Com um brilho selvagem nos olhos, Thomas cumprimentou as duas com um sorriso torto e disse que voltaria mais tarde. Ele se obrigou a sair da loja, temendo perder o controle e tomar aqueles lábios ali mesmo, na frente de Ruby.
                A verdade é que não tinha ideia do quanto a desejava até sentir sua boca contra a pele dela. A dormência que se espalhou por seus lábios... nunca sentira aquilo com ninguém. Precisava se afastar. Precisava pensar com clareza, e Alisha não ajudava em nada ao corar com a simples ideia de lhe pedir mais que um abraço. A essa altura, ele já a conhecia o suficiente para saber que se ela não quisesse nada com ele, ela lhe diria isso com toda a certeza do mundo.
Mas não.
Ela corara.
Corara e não dissera nada.
                Dentro da loja, Ruby ainda tentava entender a situação. Alisha estava com o olhar preso na porta, e parecia absurdamente irritada. Rindo consigo mesma, a moça simplesmente esperou que o acesso de raiva da amiga passasse enquanto recolocava as almofadas no sofá.
                - Noite interessante a de ontem?
                - O que quer dizer?
                - Ora, não me venha com segredos! Ontem ele foi lhe devolver a cesta de noite e hoje vocês se olham como dois animais prestes a se atacarem. Acha que não sei o que isso significa?
                - Significa que ele é um prepotente metido que se acha a última gota do Shannon.
                - E significa que ele logo estará em sua cama.
                - Ruby, pelo amor de Deus! – Alisha tentava se sentir ofendida com a afirmação, mas percebeu, relutante, que a ideia já havia lhe ocorrido.
                Com um misto de birra e receio, ela bufou e foi para trás do balcão trabalhar nas propostas da reforma, enquanto Ruby se jogou no sofá e começou a tagarelar sem parar sobre o filme que assistira na noite anterior. Em poucos segundos, ela e Alisha estavam rindo, como se nada tivesse acontecido.

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                Thomas não retornou à loja naquele dia. Pelo contrário, procurou se manter o mais distante possível dela.
                Fazia quase uma semana que estava em Clare e tudo o que vira fora seu chalé, o restaurante em frente à loja de Alisha, a loja de Alisha, a casa de Alisha e o rio Shannon... na companhia de Alisha.
             Estava começando a suspeitar que havia “Alisha” demais em sua breve estadia, o que poderia se tornar um problema a longo prazo.
                Olhou pela janela de seu chalé e observou o céu, que agora estava limpo. A chuva finalmente tinha dado uma trégua significativa, o que tornava a caminhada que ele estava planejando viável.
                Com o ânimo renovado com a ideia de sair para caminhar e simplesmente escrever, Thomas pegou seu caderno e saiu do Chalé, com um sorriso de orelha a orelha.
                Estava na hora do primeiro assassinato de seu livro ganhar corpo.

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terça-feira, 8 de março de 2016

Feliz "Dia da Mulher"?

Feliz "Dia da Mulher" para você que, pela sua cor, é excluída do mercado de trabalho;
Feliz "Dia da Mulher" para você que, pela sua baixa renda, não somente é enviada para as zonas mais periféricas da sociedade como ainda tem que aguentar macho te encochando no transporte público;
Feliz "Dia da Mulher" para você que hoje vai ganhar uma flor e uma caixa de bombons do homem que te bateu ontem e te baterá amanhã;
Feliz "Dia da Mulher" para você que não pode andar na rua de madrugada porque é uma "puta";
Feliz "Dia da Mulher" para você que não pode engravidar porque vai ser demitida;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem o machismo tão impregnado em suas veias pela sociedade patriarcal que nem consegue enxergar seu silenciamento;
Feliz "Dia da Mulher" para você que é empregada doméstica e vai ter que visitar seu filho preso;
Feliz "Dia da Mulher" para você que gosta de esportes de luta e que é ridicularizada por isso por que "não é coisa de mulher";
Feliz "Dia da Mulher" para você que sempre ouviu e não entendeu o que é "(fazer algo) como uma mulher";
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem que ser assediada moralmente no trabalho para conseguir cuidar des filhes e pagar as contas de casa;
Feliz "Dia da Mulher" para você que não tem condições financeiras e estruturais em casa, mas não pode abortar;
Feliz "Dia da Mulher" para você que é sexualizada pela sua cor;
Feliz "Dia da Mulher" para você que teve a obrigação de cuidar des filhes, mas foi tudo tranquilo quando o pai deles saiu de casa no momento em que soube de sua gravidez;
Feliz "Dia da Mulher" para você que não sabe se pode beijar sua namorada em paz na rua porque vai surgir um macho pra, das duas uma, perguntar se pode participar do beijo, ou bater em vocês;
Feliz "Dia da Mulher" para você que, por ser trans*, não encontra emprego e tem que ir vender seu corpo para ganhar dinheiro e sobreviver na sociedade;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem seus mamilos sexualizados;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem sua bunda sexualizada;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem seu corpo inteiro sexualizado;
Feliz "Dia da Mulher" para você que nunca gozou no seu relacionamento de um ano e meio porque sempre teve que agradar o macho alpha;
Feliz "Dia da Mulher" que tem que ser bonita e feliz e bem humorada e magra e com dentes perfeitos e gostosa para conseguir sobreviver no dia a dia;
Feliz "Dia da Mulher" para você que olha para a TV todos os dias e não enxerga o seu corpo em nenhum momento;
Feliz "Dia da Mulher" para você que quer comprar uma boneca e não se sente representada;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem que viver para satisfazer seu macho;
Feliz "Dia da Mulher" para você que está um cargo acima do seu colega de trabalho e ele ainda tem um salário maior;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem que aguentar homem querendo dar palpite no seu movimento - afinal, ele sempre tem que ser o protagonista, né?;
Feliz "Dia da Mulher" para você que tem que acordar todos os dias da sua vida pensando na maneira como terá que lidar com o machismo pra ele não te afetar tanto;
Feliz "Dia da Mulher".

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Claddagh - Capítulo 4

                - Ruby, eu disse para não dar tanto achocolatado para ele!
                Rindo sem parar, madrinha e afilhado encaravam Alisha com brilho nos olhos. Liam sugava o liquido da segunda mamadeira com avidez.
                - Ora, querida, ele está só se alimentando. Deixe-o em paz!
                - Por acaso é você que vai ficar tomando conta dele quando a cólica estourar?
                - Ali, você se preocupa demais! Pergunte ao Fenian o que ele acha. Se ele achar que devo parar, eu paro.
                Contendo o riso, Alisha voltou seu olhar para Thomas, fixando seus olhos nos dele, esperando uma resposta.
                Preso pelo olhar dela e tendo completa ciência de que sua integridade física seria comprometida com quase qualquer resposta que desse, o homem se limitou a sorrir.
                - Acredito que não há problema em tomar um pouco mais de leite....Desde que esta seja a última mamadeira.
                - HÁ! EU VENCI! – Gritou Ruby.
                - THOMAS!
- Prometo ajudar a segurá-lo, se a cólica vier.
- Como quer segurá-lo se nem ao menos sabemos se ele aceita ir para o seu colo? – Perguntou Alisha, em tom provocador.
- Ora, podemos resolver isso de modo fácil, querida!
Num movimento rápido, Ruby se levantou e entregou o bebê para Thomas sem nem pensar duas vezes.
Atordoado, Thomas segurou a criança com receio.
Liam encarou o homem por alguns segundos. Um brilho risonho tomou conta de seus olhos e um sorriso largo iluminou a boca da criança, revelando a gengiva que começava a ser enfeitada com alguns dentinhos brancos.
Thomas relaxou instantaneamente e começou a fazer caretas para o bebê, que ria deliciado com as palhaçadas, enquanto tentava alcançar seu cabelo e puxá-lo.
Alisha estava incrédula.
Ruby se aproximou da amiga lentamente e sussurrou em seu ouvido.
- Eles se deram bem, querida. Acredito que uma de suas objeções iniciais ao romance com o senhor Fenian tenha sido quebrada...
- Calada.
Rindo, Ruby voltou sua atenção para o homem que brincava com seu afilhado com a maior naturalidade do mundo. Seu peito se encheu de uma pequena esperança pelo futuro da amiga de modo involuntário.
Sorrindo, Thomas devolveu o bebê para o colo de Ruby com cuidado.
- Ele é incrível.
- Pode apostar, Fenian. Tenho o melhor afilhado do mundo!
- Alisha, pode me acompanhar até o rio? – A pergunta saiu dos lábios de Thomas antes que ele pudesse controla-la.
Silêncio.
Todos ficaram calados por intermináveis três segundos, até que Liam explodiu em uma gargalhada.
- Vá, Alisha. Vou dar um jeito neste pestinha!
Alisha assentiu sem pensar. Quando deu por si, ela e Thomas se encontravam sozinhos às margens do Shannon. 

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Quando chegaram às margens do rio, Thomas parou de andar e se sentou na grama. Alisha observou o movimento dele com surpresa. Parecia algo costumeiro.
- Já veio aqui antes, Thomas?
- Eu cresci aqui.
- Eu não sabia...
- Existem muitas coisas que ainda não sabemos sobre o outro. E é exatamente por isso que te chamei aqui.
Rindo, Alisha o imitou, sentando-se a seu lado.
- Pretende me entrevistar?
- Sou um escritor. Faço esse tipo de coisas às vezes.
Genuinamente intrigada, Alisha tentou disfarçar a curiosidade, mas seus olhos brilharam, fato que não escapou ao olhar atento de Thomas.
- Pergunte o que quiser. Terei bastante tempo para fazer as minhas perguntas.
Foi a certeza e a promessa de tempo naquelas palavras que fizeram o pulso dela acelerar. Tempo.
Quanto tempo?
- Bem... Você escreve que tipo de livros?
- Romances policiais, em geral. Mas me arrisco com outros gêneros eventualmente.
- Gosta de mistérios?
- Sou apaixonado por eles. Ainda mais pelos inteligentes. Gosto de deixar uma trilha de pistas para meus leitores, mas, obviamente, me divirto deixando algumas pistas falsas no caminho. Qual seria a graça se tudo se resolvesse de forma rápida?
Alisha tinha milhares de perguntas. Milhares delas. Mas não conseguia conter a curiosidade sobre algo mais urgente e essencial. Resolveu sondar discretamente.
- Está trabalhando em algum livro no momento?
- Sim. Foi por isso que voltei a Clare. Minha nova estória se passará aqui.
Maravilhada, Alisha imaginou aquela terra, a terra onde nascera, sendo palco de um grande romance policial. Teria que ler o livro quando estivesse pronto. Precisaria ler, inclusive, para entender um pouco melhor o homem à sua frente.
- Você disse que cresceu aqui, mas não me recordo de vê-lo quando eu era criança.
- Vivi aqui até meus dez anos. Meu avô faleceu quando eu tinha seis, aqui mesmo, nas margens deste rio. Despois disso, tive algumas... dificuldades. - Ele segurou um tufo de grama e o arrancou despreocupadamente do chão. - Depois de quase quatro anos sem eu conseguir sair de casa, meus pais decidiram que seria melhor para mim se nos mudássemos. Fomos para Londres, e esta é a primeira vez que volto aqui desde então.
Surpresa com o quanto ele parecia tranquilo com a ideia de compartilhar lembranças tão dolorosas, Alisha pensou em perguntar mais sobre o avô de Thomas, mas se conteve ao perceber a frieza e o distanciamento em seus olhos. Por mais que sua voz soasse tranquila, era óbvio que as memórias ainda doíam, e que aquilo era tudo o que estava disposto a compartilhar sobre o assunto no momento.
- Por quanto tempo pretende ficar por aqui?
Essa era a real pergunta que quisera fazer desde o primeiro instante, mas se recusou a assumir isso para si mesma.
- A princípio, por seis meses. Mas ficarei até que meu livro esteja concluído. Pode demorar mais, pode demorar menos, não tenho como saber.
Seis meses. Bem, era um tempo razoável.
Talvez fosse menos.
E talvez fosse mais.
Neste instante, um vento forte começou a soprar sobre as árvores. Thomas levantou o rosto e observou o céu, que havia passado de uma cor azulada para um cinza escuro.
- Liam, droga... – Foi tudo que ele conseguiu ouvir antes de sentir o corpo de Alisha se afastar. Em poucos segundos ela estava com o filho nos braços e tanto ela quanto Ruby arrumavam as coisas para ir embora.
Thomas correu e as ajudou como pôde, mas a chuva começou antes que tivessem terminado.
- Preciso tirar Liam desta chuva!
Ao ouvir a preocupação na voz de Alisha, Thomas se virou para ela e a viu escondendo o filho com o próprio agasalho enquanto o aninhava junto ao peito, num gesto instintivo.
- Vá na frente com a Ruby, Alisha. Eu termino de recolher as coisas e as levo para você em seguida.
- Tem certeza?
Com um sorriso torto, ele a olhou nos olhos com firmeza.
- Confie em mim. Eu acho que sei lidar com os restos de um piquenique.
- Muito bem, Fenian! Muito galante de sua parte. Agora vamos logo com isso, vocês podem flertar quando eu estiver seca e dormindo em minha adorada cama!
Vermelha, Alisha olhou para Ruby incrédula, sem saber o que dizer. A outra simplesmente piscou e se aproximou de Thomas.
- A casa dela fica na rua de trás da loja. É a com as roseiras e as tulipas na frente. Cafona, eu sei. Diga isso a ela.
Sem mais uma palavra, Ruby se virou e começou a correr em direção ao lugar onde tinham parado o carro. Alisha começou a acompanha-la, mas parou e voltou seu olhar para Thomas.
- Eu confio. – Disse ela, numa voz quase inaudível.
Ela se virou de costas e começou a correr protegendo o filho no colo, enquanto Thomas aceitava o fato de que aquela afirmação nada tinha a ver com o fato de ele ter se proposto a arrumar as sobras do piquenique.

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Uma hora mais tarde, Alisha estava com os cabelos molhados do banho e terminava de vestir uma roupa quente. Liam estava adormecido no berço, como se nada no mundo pudesse perturbá-lo, soltando gemidos ocasionais por conta dos inúmeros sonhos que preenchiam seu sono. A moça sorriu e desceu para a cozinha. Colocou água para ferver e olhou pela janela. A visão estava assustadora. Uma tempestade de raios enfeitava os céus e o barulho dos trovões abalavam seu coração.
Thomas ainda estava lá fora.
Por causa dela.
Respirou fundo e agradeceu silenciosamente o fato de sua mãe ter ficado presa na casa de seus tios, os quais ela costumava visitar uma vez por mês, por conta da tempestade. Do contrário, ela tinha certeza que teria passado horas ouvindo-a reclamar de sua “total falta de responsabilidade”. Sem mencionar o fato de que, provavelmente, ela teria acabado por conhecer Thomas, um encontro que Alisha adiaria pelo máximo de tempo possível, isso se não conseguisse evita-lo completamente.
Ruby já ligara avisando que estava em casa, quentinha e pronta para ver TV por horas a fio sob suas cobertas. Isso a acalmara um pouco. Pelo menos sua amiga estava bem. Mas não tinha como ter ideia do que acontecera com Thomas, visto que não tinha nenhum telefone dele. Tudo que lhe restava era esperar.
O chá ficou pronto em poucos minutos e ela se serviu de uma xícara. Com a bebida quente, ela voltou a olhar pela janela. Quando estava prestes a terminar sua bebida, uma silhueta preta parou na frente de sua casa e o coração de Alisha deu um pulo ao identificar a figura de Thomas.
O homem saiu de sua moto e correu até a porta, com a cesta do piquenique em uma das mãos e uma sacola na outra. Antes mesmo de tocar a campainha, a porta se abriu, revelando Alisha com os cabelos molhados e o rosto corado.
Ele nunca a vira mais bonita.
Alisha analisou o homem a sua frente. Ele estava completamente encharcado, mas seus olhos brilhavam, vivos com uma chama quente e selvagem. Tal constatação fez a boca de Alisha secar.
- Você... quer entrar?
                - Preciso tirar esta roupa antes.
                - Você precisa o que? – A cabeça de Alisha girava.
                - A capa de chuva, Alisha. Não quero molhar sua casa. Segure isto, por favor.
                Atônita, Alisha segurou tanto a cesta do piquenique quanto a sacola, sem conseguir esconder o rubor que tomou conta de seu rosto.
                Thomas, aparentemente inconsciente do que acontecia com ela, se abrigou sob o telhado da porta de entrada e tirou a capa de chuva preta, revelando uma calça jeans escura e uma camisa de botões de um azul escuro. Alisha não conseguiu evitar. Seus olhos acompanharam o contorno do tronco, dos braços, do peito... A camisa se moldava ao corpo dele, enaltecendo seus músculos. E aquele perfume...
                - Você está bem?
                A pergunta a tomou de assalto, e ela olhou para ele, que exibia um sorriso suave e malicioso.
                Vermelha e irritada consigo mesma, ela se virou de costas e respondeu ríspida.
                - Decida logo se vai entrar ou não.
                Ainda divertido por ter flagrado o olhar da moça, Thomas deixou a capa de chuva do lado de fora e dobrou as mangas da camisa, deixando seu antebraço exposto.
                - Feche a porta depois que entrar. – Foi tudo o que ela disse antes de ir para a cozinha.
                Thomas a acompanhou e se apoiou na porta da cozinha, observando-a desfazer a cesta parecendo irritada. Precisava pensar em algo para amenizar os nervos da moça antes que ela resolvesse expulsá-lo de volta para a chuva.
                - Como está Liam?
                A pergunta teve o efeito desejado. Imediatamente os lábios de Alisha se contorceram em um sorriso luminoso.
                - Está dormindo lá em cima.
                - Espero que ele não tenha tomado muita chuva...
                - Ele mal se molhou. Minhas roupas, por outro lado, vão escorrer por dias.
                - Aposto que as de Ruby também. Será que daremos sorte de algumas das roupas dela desbotarem um pouco?
                Rindo, Alisha jogou um dos saquinhos de pão do piquenique nele num gesto de lealdade, defendendo o gosto questionável de sua amiga, e voltou a trabalhar na cesta.
                - Ela é incrível, Thomas.
                - Concordo totalmente.
                - Escute, obrigada por trazer a cesta. Eu não sei como teríamos feito se....
                Os olhos da moça pousaram sobre a sacola e ela franziu o cenho.
                - O que tem na sacola?
                Thomas se aproximou e pegou a sacola. Seu perfume preencheu o ar ao redor de Alisha, fazendo com que ela se questionasse sobre o porquê de ela mesma não ter passado perfume e deixando-a zonza.
                O homem abriu a sacola e retirou uma garrafa de vinho tinto. O choque de Alisha foi instantâneo.
                - O que você...
                - Não se preocupe. É apenas um presente. Onde devo guarda-lo?
                Sem saber o que dizer, Alisha apontou um armário próximo à mesa. Thomas guardou o vinho e sorriu para ela.
                - Precisa de ajuda em mais alguma coisa?
                - Acredito que não.
                Silêncio.
                - Obrigada por hoje...e pelo vinho...
                Foi o tom acanhado e levemente orgulhoso, e não as palavras em si, que fez com que o brilho dos olhos dele aumentasse. Ele conseguia perceber o quanto o comportamento dela com relação a ele estava mudando, e a verdade é que não conseguia entender o motivo da mudança, apesar de ser uma mudança para melhor. Ele se aproximou devagar, olhando-a nos olhos.
                - Não se preocupe com isso.
                - Não. É sério. Preciso mesmo agradecer. – Ela suspirou e fechou os olhos por alguns segundos. – Nem todos reagem tão bem assim ao fato de eu ter um filho.
                Vê-la desse jeito o inquietava.
                - Nem todas as pessoas pensam.
                Ele continuou a caminhar na direção dela.
                - Mas os Dunne, por exemplo, são uma família respeitada... – Começou ela, tentando se afastar discretamente.
                - A Senhora Dunne precisa urgentemente de um espelho, e o Senhor Dunne precisa de um divórcio.
                Ele estava cada vez mais perto.
                - Mas...
                - Não existe “mas”, Alisha.
                Thomas parou a poucos centímetros dela. Seus olhos presos aos dela. Ele conseguia sentir o cheiro suave dos cabelos dela, conseguia ver seus olhos brilhantes e francamente assustados com a proximidade. Via toda a força e a fragilidade que aquela mulher conseguia apresentar e, ao mesmo tempo, despertar nele.
                Ele a queria. Sabia disso. E sabia que estava tão perto de estar com ela quanto Ruby de usar apenas uma cor em suas roupas. Muitas complicações, muitos medos, muitas questões a serem esclarecidas.
                Alisha sentia o corpo vibrando com a proximidade dele. Seu coração estava prestes a explodir em seu peito, e seus joelhos ameaçavam fraquejar. Era a primeira vez que se sentia tão insegura e desajeitada perto de um homem. Mal conseguira dizer uma ou duas palavras desde que ele chegara em sua casa.
Patética.
Enquanto isso ele estava lá, primeiro parecendo um modelo naquela maldita porta e depois caminhando até ela, com aqueles olhos ardentes e aconchegantes presos nos dela, como se ela fosse uma das criaturas mais incríveis que ele já houvesse visto. E tudo em que ela podia pensar era em como estava com medo de ele tocá-la e, ao mesmo tempo, em como estava assustadoramente mais amedrontada com a ideia de que ele não o fizesse.
Para surpresa de ambos, Thomas pegou a mão de Alisha e beijou sua palma da mesma forma que fizera quando se conheceram, mas desta vez mais demoradamente, fazendo o sangue da moça ferver. Num movimento sutil, ele colocou a mão da moça sobre o próprio peito, fazendo com que ela sentisse seu coração. Ele pode ver o brilho que passou pelos olhos de Alisha quando ela se deu conta de como o coração de Thomas estava acelerado.
Ficaram assim até que os batimentos cardíacos se normalizaram, e então ele a puxou para si e a acolheu em seus braços, abraçando-a.
Alisha retribuiu o abraço, escondendo o rosto no pescoço de Thomas sem se importar com o quanto este gesto pudesse parecer íntimo demais para duas pessoas que mal se conheciam. A verdade é que, de alguma forma, ela se sentia mais íntima dele naquele momento do que já se sentira com qualquer pessoa em toda sua vida. Seus olhos estavam fechados, e ela tentava se concentrar nas sensações que aquele abraço lhe trazia. Ela podia sentir o corpo quente por baixo daquela camisa azul, os braços longos e fortes que a acolhiam com uma ternura quase impensável, aquele coração que até poucos segundos estava disparado por causa dela, aquele perfume amadeirado...
Minutos depois, Thomas começou a afastá-la com dificuldade. Tê-la em seus braços e depois ter que abrir mão daquele contato não era algo fácil, principalmente porque não sabia quando teria aquilo novamente.
Alisha, ainda envolta pelos braços dele, ergueu o olhar e, pela primeira vez, procurou por aqueles olhos azuis, que logo se prenderam aos dela.
- Nos veremos amanhã?
- Com toda a certeza. Vou te ajudar a trocar o vidro da loja.
- Já disse que não preciso de ajuda.
- Eu sei.
Rindo, Thomas depositou-lhe um beijo na testa e, com um sorriso torto e um último olhar para ela, saiu pela mesma porta que havia entrado em direção à tempestade que agredia os céus e a terra do lado de fora.

 

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